terça-feira, 14 de maio de 2013

Ocupar Lisboa

Ocupar | Ocupar em Portugal
Artigo 65.º do Decreto de Aprovação da Constituição nº CRP 1976 de 10 de Abril de 1976 - (Habitação): 1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
Os alicerces do movimento okupa nascem e ganham vida no berço capitalista, como uma forma de protesto e luta à especulação imobiliária - através da subversão entre o privado e o comunitário, ao abandono do património, que ganha especial visibilidade nas metrópoles, devido à desertificação das mesmas, assim como remete a um questionar daquilo que é o conceito de propriedade.
Essencialmente, a ocupação revela-se como um acto de afirmação e crítica face ao sistema, tentando-se recuperar uma soberania individual e restabelecer um local de actuação de comunidade: o indivíduo torna-se cada vez mais activo, não se demitindo do seu papel.

Ocupar um espaço abandonado, em relação ao qual o proprietário legal não revela interesse ou não tem condições para manter vivo, e que portanto é considerado devoluto, é uma acção passível de ser interpretada através de diversos pontos de vista. A legislação altera-se de país para país, havendo muitas disparidades entre estas.

Em Portugal, este movimento não se encontra tão socialmente disseminado como noutros países, como Espanha, por exemplo, em que a  okupação assegura o seu lugar cativo num retrato social logo após a Guerra Civil Espanhola. A maioria da população não conhece o movimento e a legislação não o admite: a ocupação não existe em termos jurídicos.
Artigo nº 1316 (Modos de Aquisição) do Código Civil Português: O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei. 
Alínea d) do Artigo nº 1317 (Momento da Aquisição) do Código Civil PortuguêsO momento da aquisição do direito de propriedade é, nos casos de ocupação e acessão, o da verificação dos factos respectivos.
Artigo nº 1318 do Código Civil PortuguêsPodem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono, ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos artigos seguintes.
A realidade é que ocupar em Portugal é uma grande história de amor, qual Romeu e Julieta; é uma luta diária por um espaço que legalmente não pertence a quem ocupa, estando esta entidade sujeita a ser despejada a qualquer momento, independentemente do tempo, dedicação e empenho que tenha investido no mesmo, e do estado de devolução em que o bem imóvel se possa encontrar. A habitação torna-se um fetiche: basta um alguém atribuir importância a uma casa devoluta, que esta passa a ter um repentino valor para o seu proprietário (alienando-nos do significado de propriedade), que a tinha abandonado até então.

Assim como no amor, a desilusão pode caminhar de mãos dadas com a ocupação. Tornar um espaço moribundo um Lar é também uma forma de partilha, porque também colectiva; usualmente, os alicerces desse Lar são comunitários: para a comunidade, como comunidade, em comunidade.

É de se compreender que a ocupação não prende o espaço; é versátil e transversal; não tem morada, não cessa. É, independentemente do sítio.

A ocupação não é uma utopia, mas a utopia pode tornar a ocupação mais recorrente: quando caminhas para a utopia podes passar pela ocupação. Como todas as histórias de amor, é uma história de amor contigo mesmo e com o teu ego. É importante, como em tudo, que os egos colectivos se reunam com alguma frequência e se amem, sem nunca haver vontade dissimulada que algum não participe, sem que as portas se fechem às escondidas.


Todas ao Ministério

No passado dia 25 de Abril, ocupou-se em Lisboa o antigo Ministério da Educação da Ditadura Nacional, nº 1 do Campo Mártires da Pátria, propriedade privada. A acção relâmpago, de carácter provocador e simbólico, apresentou-se ao público com uma agenda cultural compreendida entre o dia da ocupação e o 1º de Maio e incluía vários debates, jantares, conversas (inclusive com Alselm Jappe, que se encontrava em Portugal durante essa semana) e outros convívios e encontrava-se aberta a toda a população. 

Dois dias depois, já o proprietário conhecia o sucedido e fez o seu representante acompanhar-se da PSP ao local, de forma a despejar quem lá se encontrasse. No dia anterior por mais de três vezes vários agentes da autoridade, de diferentes postos, se tinham dirigido ao Ministério, revelando não conhecer a legislação, o edifício ou o proprietário do mesmo, que diziam pertencer ao Estado Português.

Para além do simbolismo patente a este projecto, ocupar este palácio em particular revelou-se muito oportuno, pois pôs a descoberto um caso de usurpação do património nacional, macabro:


 - datado do século XVIII, o Palácio Silva Amado foi adquirido pelo estado em 1928, sendo que constitui um dos mais ricos exemplos da arquitectura setecentista e está classificado como Imóvel de Interesse Público; o seu interior encontra-se ornamentado com materiais de grande qualidade e aparato como mármores polidos, tectos de caixotões de madeira pintada, talha, pintura, espelhos, entre outros;



 - após a ocupação do edifício, que estaria abandonado há mais de uma década, encontraram-se todas as paredes despidas dos painéis de azulejos, ainda com as marcas da presença dos mesmos, que teriam sido numerados;

- há um projecto para este palácio ser reestruturado, pela promotora imobiliária espanhola Reyal Urbis, e transformado num hotel de luxo, num investimento de mais de 20 milhões de euros, como afirma a proprietária no seu sítio.

Esta ocupação simbólica desenferrujou muitas engrenagens. Muito bem recebida pela vizinhança, por turistas e curiosos, teve as portas abertas sempre desde o início: não precisas de chave para entrar em casa.
Urge repensar e restabelecer determinados valores. O libertinismo e o estado de selvajaria deformada que paira no ar põe todos a jeito para que isso aconteça nesse sentido.


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