terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Idiossincrasias do acordo ortográfico

Há demasiado tempo que são esgrimidos argumentos sobre o mais recente acordo ortográfico de língua portuguesa, também conhecido como AO90. Desde o início, identificam-se mais detratores que apoiantes a expressar considerações sobre regras, aprovação e implementação do AO90. Entre outros, colunistas, jornalistas, linguistas e políticos reuniram e publicaram, nos mais diferentes títulos, carateres alinhados sob as regras do anterior acordo, sem cedências à nova proposta gramatical. Apaixonados, dramáticos, emocionais, entusiásticos, exaltados, excessivos, facciosos, ponderados, redutores, romanescos, mais e menos honestos, o ideário passou por ponderações de maior e menor interesse, mas, de todas - apologistas e detratores -, nenhuma invocou as reflexões de Ferdinand de Saussure.
O pragmatismo de algumas análises contidas na obra, póstuma, «Curso de Linguística Geral», sobre a «Natureza do signo linguístico» e a forma como a análise a que denomina «Imutabilidade do Signo» se adapta às vicissitudes de implementação do AO90 são desarmantes:


«Se, frente à ideia que representa, o significante manifesta-se como objeto de livre escolha, em comparação, relativamente à comunidade linguística que o emprega, ele não é livre mas imposto. A massa social não é consultada, e o significante escolhido pela língua não poderia ser substituído por qualquer outro. [...]
Não só um indivíduo seria incapaz, se o quisesse, de modificar no que quer que fosse a escolha que foi feita, mas a própria comunidade não pode exercer a sua soberania sobre uma só palavra: ela está ligada à língua tal como é. [...]
Em qualquer época, e por muito que recuemos, a língua aparece como uma herança duma geração precedente. O ato pelo qual, num dado momento, os nomes foram distribuídos pelas coisas, e que estabelecem o contrato entre os conceitos e as imagens acústicas - esse ato, podemos imaginá-lo, mas nunca foi verificado. [...]
De facto, nenhuma sociedade conhece nem nunca conheceu a língua senão como produto herdado das gerações anteriores que se deve receber e manter intacto. [...]
A língua é, de todas as instituições sociais, a que oferece menor margem às iniciativas. Ela incorpora a vida da comunidade, e esta, naturalmente inerte, aparece antes de mais como um fator de conservação.»
(Saussure, Ferdinand, (1916/1999), O Curso de Linguística Geral. Lisboa: Dom Quixote, p. 129, 130, 133)


Tais argumentos delimitam a controvérsia em novo enquadramento, tentando possível esclarecimento dos motivos disruptivos enunciados.
A dado momento da obra, existe ponto em que a análise promove a procura da depuração da argumentação à sua essência:

«Ainda que a comunidade fosse mais consciente, não a saberia pôr em discussão. Para que uma coisa seja posta em questão é preciso que assente numa norma racional.»
(Saussure, Ferdinand, (1916/1999), O Curso de Linguística Geral. Lisboa: Dom Quixote, p. 132)


Em todo o caso, é privilegiado ponto em que a análise é decisiva:

«O tempo, que assegura a continuidade da língua, tem um outro efeito, à primeira vista contraditório em relação ao primeiro: o de alterar mais ou menos rapidamente os signos linguísticos, e, num certo sentido, podemos falar ao mesmo tempo de imutabilidade e da mutabilidade do signo.»
(Saussure, Ferdinand, (1916/1999), O Curso de Linguística Geral. Lisboa: Dom Quixote, p. 134)


Seja mais ou menos abrupta, segundo Saussure, a língua - por arraste os seus signos - sofre sempre mutabilidade, ainda que a imutabilidade seja norma. Talvez esse motivo tenha estado na origem de o presente texto tentar seguir as regras do novo acordo ortográfico.

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