quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Correr com Jean Baudrillard

Por vezes, é no quotidiano mais frugal de expectativas que se revelam reflexos das possíveis interpretações do que se lê de interesse. O depoimento é descomprometido, os excertos são retirados de «A Sociedade de Consumo» de Jean Baudrillard.
 

Perante a necessidade fisiológica de exercitar o corpo, com a condicionante de recursos financeiros limitados, o atletismo surge, até para os menos devotos, com potencialidades incontornáveis: calçam-se sapatilhas, vestem-se calções e o horizonte é o limite.

«A beleza não pode ser numa definição tradicional fundada na harmonia das formas. Só pode ser magra e esbelta, em conformidade com a atual definição da lógica combinatória de signos, regulada pela mesma economia alegórica que a funcionalidade dos objetos ou a elegância de um diagrama.» Pag. 186

Calma! Nada poderá ser assim tão cru e genuíno. Há sempre algo responsável por mediar o relacionamento do sujeito com a natureza. Até nas necessidades fisiológicas, conforto e segurança terão de ser promovidos.

«nunca se consome o objeto em si (no seu valor de uso) – os objetos (no sentido lato) manipulam-se sempre como signos que distinguem o indivíduo, quer filiando-o no próprio grupo tomado como referência ideal quer demarcando-o do respetivo grupo por referência a um grupo de estatuto superior» Pag. 66

Em troca de poucos euros, corre-se na companhia de bebida energética que «repõe» todos os elementos «essenciais» gastos, momentos antes de cada gole.

«O consumo surge como sistema que assegura a ordenação dos signos e a integração do grupo; constitui simultaneamente uma moral (sistema de valores ideológicos) e um sistema de comunicação ou estrutura de permuta.» Pag. 91

Tanto quilómetro percorrido, em treinos, provas e desafios incomensuráveis, como terminar a Maratona, o ritmo da passada torna-se referência para outros que iniciam o encontro com a corrida para a descoberta da própria natureza. No pedido de soluções para as dúvidas iniciais, revelam-se tantas situações a que a indústria confere legitimidade, impondo-se como conciliadora de eventuais conflitos entre o possível atleta e os melhores resultados a alcançar. Conjunturas que se tornam, para os mais experientes, referencial das crenças abandonadas com o assomar de quilómetros em velocidade ritmada.

«A felicidade como fruição total e interior, felicidade independente de signos que poderiam manifestá-la aos olhos dos outros e de nós mesmos, sem necessidade de provas, encontra-se desde já excluída do ideal, de consumo, em que a felicidade surge primeiramente como exigência de igualdade (ou, claro está, de distinção) e deve, em tal demanda, significar-se sempre a «propósito» de critérios visíveis.» Pag. 50

O vestuário, em qualquer atleta iniciante, torna-se, com facilidade, o reflexo do poder económico. Isto no tiro de partida. Na meta, a ascensão social é denunciada na figura de central informativa: a proliferação de marcas atribui-lhe conforto e serviços capazes de publicar, para todos observarem, a velocidade com que percorreu o último desafio.

«Não existe definição rigorosa do gadget. Se se aceitar a definição do objecto de consumo pelo desaparecimento relativo da sua função objetiva (utensílio) em proveito da função de signos, se se admitir que o objecto de consumo se caracteriza por uma espécie de inutilidade funcional (o que se consome é inteiramente diferente do «útil»), então a engenhoca revela-se como a verdade do objecto na sociedade de consumo.» Pag. 142

A parafernália tecnológica rouba-lhe a crença nas reais capacidades: isto é para este resultado, aquilo é para superar aquela adversidade e, por fim, conquistar metas. Assim, são amortecidos esforços, monitorizados e registados, a cada momento, com a variação cardíaca a defrontar o declive do percurso.
Tudo de última geração e tão perto da descontinuação. A cada passada, a vertigem do obsoleto poderá condicionar as mentes mais suscetíveis. 


«Pode ainda acrescentar-se ao balanço a obsolescência acelerada dos produtos e das máquinas, a destruição de estruturas antigas que asseguravam determinadas necessidades, a multiplicação das falsas inovações, sem benefício sensível para o modo de vida.» Pag. 34

Os resultados são milagrosa soma de propriedades adquiridas e postas a funcionar a cada milímetro da progressão. O protagonismo do potencial desportivo individual diminui a cada gole energético:
— Para que bebes essa mistela colorida?
— Para prevenir a reposição energética.
— Então a alimentação não chega? Vejo que ainda tens quilos de sobra para superar eventuais gastos energéticos.
— É alimentação melhorada.


«A fatalidade sugere-se e significa-se assim em toda a parte, a fim de que a banalidade venha nela apascentar-se e achar desculpa.» Pag. 28

— Alguma vez viste alimentos azuis?
— Isso é boa questão. Não faço ideia.
— Fico a aguardar resposta no fim da prova. Tens 10 km para refletir.
No atletismo, os resultados são determinados pelo equilíbrio entre mente e corpo. Nada mais!


«Vivemos o tempo dos objetos: quero dizer que existimos segundo o seu ritmo e em conformidade com a sua sucessão permanente. Atualmente, somos nós que os vemos nascer, reproduzir-se e morrer, ao passo que em todas as civilizações anteriores eram os objetos, instrumentos ou monumentos perenes, que sobreviviam às gerações humanas.» Pag. 14

Os resultados são mais que a superficialidade dos apetrechos de amortecimento e medição da natureza. Sem cedências, têm de enfrentar as adversidades e contrariedades do alcatrão da forma mais crua e autêntica. A essência pelo essencial.
Consumo, apenas energético!

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