quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Subversão pelo maniqueísmo

Perante a abordagem das idiossincrasias da indústria cultural e observação da
hegemonia da linguagem contemporânea na produção cinematográfica ocidental, a imagética austera e, por tantas vezes, tortuosa, da obra de Michael Haneke surge como urgência para reflexão atenta. Nem de propósito, no entretanto, é atribuída a Palma de Ouro da edição de 2012 do Festival de Cinema de Cannes ao seu último filme «Amour», depois de a ter conquistado, pela primeira vez, em 2009, com «The White Ribbon» - «O Laço Branco», em Portugal. Decerto, a consagração com tais galardões - a que não terá de corresponde maior plateia -, surge pelo reconhecimento da tentativa de fuga ao óbvio, na senda da inquietação de novas questões interpretáveis nos prolíficos argumentos.

«Funny Games», Michael Haneke, 1997
Com laivos de reflexão mais evidente sobre a própria conduta cinematográfica contemporânea, levou à tela, em 1997, o título «Funny Games», onde, por entre a cadência de violência gratuita – ainda assim dando primazia à sugestão dos atos físicos, em detrimento do protagonismo artificioso do sangue enquanto elemento de distração e fuga do substancial –, o cineasta austríaco vai afrontando o público no jogo de possível negação das veleidades do maniqueísmo prevalente. «Bem» e «mal» vão testando forças, digladiando-se para além da sequência hedionda de acontecimentos de impetuosidade física e psicológica. Quem vencerá?

Em dois momentos decisivos são reveladas intenções. No primeiro, com subtileza, um dos protagonistas do «mal», interpelando, desdenhoso e confiante, o público, em primeiro plano, propõe a aposta de que os acossados não sobreviverão até às 9h da manhã seguinte. No segundo momento, mais evidente, encarando situação de revês nos intentos acintosos, o mesmo personagem, selecionando os botões do comando remoto existente na cena, retrocede a diegese até ao momento em que poderá prevenir novo encadeamento a seu favor, com vantagem desleal perante a possível redenção do maniqueísmo, desarmando o público menos elucidado do propósito do argumento.

«Funny Games», Michael Haneke, 1997
Recorrendo ao discurso de Laura Mulvey, em «Visual Pleasure and Narrative Cinema», nada mais que, em oposição à «manipulação talentosa e agradável do prazer visual», «abrir caminho a uma negação total do conforto e da plenitude do cinema de ficção narrativo».

Ainda que, desde sempre, tenha tentado aflorar as previsibilidades das convenções do cinema contemporâneo de distribuição comercial mais popular, em 2007, a integridade da obra foi subvertida na essência, pelo próprio Haneke: contrapondo a produção austríaca interpretada em idioma alemão do original, cedeu as pretensões inaugurais, dirigindo o remake, em coprodução francesa, alemã, italiana, inglesa e americana, com idioma inglês e atores mais familiares, na tentativa de maximizar a visualização da obra esquecida no fim do século XX, cedendo às regras da indústria.


«Funny Games», Michael Haneke, 2007
Será que todo este novo público, menos exigente e incapaz de enfrentar a crueza e desconforto da versão original, terá conseguido assimilar as intenções latentes na obra?
Em «Funny Games» o «mal» vence, subvertendo a interpretação hegemónica do maniqueísmo pela prevalência do bem, seja ao início da manhã ou, mais confortável, passada uma década!

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